quinta-feira, 18 de maio de 2017

Resenha (e introdução) do livro Psicologia e Alquimia de C. G. Jung



           
            O interesse de C. G. Jung pela alquimia não surgiu de inopinado como uma escolha deliberada, muito menos como uma curiosidade a priori no intuito de explicar algum tópico específico de sua teoria. Ele conta em sua assim chamada “autobiografia” Memórias, Sonhos, Reflexões que foi após o início do seu confronto com o inconsciente que se deu seu encontro com a Alquimia. Esse encontro foi para ele uma experiência decisiva, onde ele encontrou as bases históricas da sua psicologia.
            Primeiro ele decidiu estudar seriamente os gnóticos¹, dado que na sua opinião, seu interesse se dava por eles terem “encontrado, a seu modo, o mundo original do inconsciente. Confrontaram-se com imagens e conteúdos que, evidentemente, estavam contaminados pelo mundo dos instintos” (JUNG, 2012, p. 247). Contudo,

A tradição entre a gnose e o presente parecia-me rompida e, durante muito tempo, não consegui encontrar a ponte entre a gnose – ou o neoplatonismo – e o presente. Só quando comecei a compreender a alquimia pude perceber que ela constitui um liame histórico com a gnose, e assim, através dela, encontrar-se-ia restabelecida a continuidade entre o passado e o presente. A alquimia como filosofia da natureza, em vigência na Idade Média, lança uma ponte tanto para o passado, a gnose, como para o futuro, a moderna psicologia do inconsciente (JUNG, 2012, p. 247).

            Mas antes de tomar contato com a Alquimia, ele teve alguns sonhos muito interessantes. No primeiro, que se repetiu várias vezes, ao lado da casa dele havia outra casa anexa que ele desconhecia. Quando finalmente conseguiu acessar encontrou em seu interior uma biblioteca repleta de livros dos séculos XVI e XVII. Nela haviam livros sobre alquimia ricamente ilustrados com gravuras de cobre e couro de porco. Ele chega a afirmar que “nos sonhos, sentia a fascinação indescritível que emanava deles e de toda a biblioteca” (JUNG, 2012, p. 249).
Em 1926 ele teve um decisivo sonho que anunciava seu encontro com a alquimia: em meio à guerra (presumivelmente a primeira guerra mundial ocorrida entre 1914 e 1918), ele foge com um homenzinho em uma carroça até entrar em um túnel após passar por uma ponte e sair na região de Verona (Itália). Lá ele avista uma casa senhorial semelhante ao castelo de algum príncipe da Itália do Norte. A curiosidade o leva a adentrar o pátio de tal modo deslumbrado que quando os portões foram fechados e ele se viu prisioneiro do século XVII, ao que reagiu resignado.
Este sonho o levou a estudar inúmeros livros sobre história mundial, história das religiões e história da filosofia, além do livro que Herbert Silberer escreveu sobre alquimia. Em suas palavras “quando o seu livro foi publicado, a alquimia me pareceu uma coisa marginal e bizarra, apesar de ter apreciado a perspectiva anagógica, isto é, construtiva”. Somente em 1928, ao tomar contato com o texto alquímico chinês, O segredo da flor de ouro, enviado pelo seu amigo e sinólogo Richard Wihelm é que ele pode se aproximar da essência da alquimia.
O primeiro livro estudado foi o Artis Auriferae Volumina Duo, de 1953. A partir daí ele compreendeu o significado do sonho anunciador de que ele “era um prisioneiro do século XVII”. Para superar as dificuldades do texto, decidiu “organizar um dicionário de palavras-chave com notas explicativas. Com o passar do tempo recolhi milhares de termos, e isso constituiu volumes inteiros de citações. Seguia o método puramente filológico como se estivesse decifrando uma língua desconhecida. Assim, pouco a pouco, foram fazendo sentido para mim as expressões dos alquimistas. Foi um trabalho que me absorveu por mais de dez anos” (JUNG, 2012, p. 251-52).
O estudo da alquimia permitiu que Jung compreendesse que o inconsciente é um processo e que as relações estabelecidas entre o ego e os conteúdos do inconsciente desencadeava uma metamorfose da psique. Eis o que afirma em suas Memórias: “Mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas, e mediante a compreensão da simbologia alquimista cheguei ao conceito básico de toda de toda a minha psicologia, o ‘processo de individuação’” (JUNG, 2012, p. 256).
            Ele ainda afirma que um dos aspectos essenciais do seu trabalho foi desde cedo abordarem temas relacionados às concepções de mundo e do confronto com problemas religiosos. Nesta perspectiva, apenas em Psicologia e Religião (1940) e Paracelso (1942) é que ele pode apresentar suas concepções de modo mais detalhado.

Os escritos de Paracelso contêm um grande número de pensamentos originais nos quais aparece claramente uma preocupação com a alquimia, ainda que sob uma forma tardia e barroca. Foi o estudo de Paracelso que me levou a descrever a essência da alquimia, particularmente em suas relações com a religião e com a psicologia, ou melhor, à essência da alquimia em seu aspecto de filosofia religiosa. Realizei isto em Psicologia e alquimia (1944). Encontrei então o terreno que foi a base de minhas próprias experiências durante os anos de 1913 a 1917, pois o processo pelo qual passei correspondia ao processo de metamorfose alquimista, tema de Psicologia e alquimia (JUNG, 2012, p. 256).

            Esta grande obra (Psicologia e Alquimia) que compõe o volume 12 das Obras Coligidas², acima citada por Jung, é o foco central desta recuperação histórica. Ela é importante para demonstrar que a alquimia não está inserida nas obras de Jung por mero diletantismo erudito, mas justamente porque para Jung “o encontro com a alquimia foi [...] uma experiência decisiva; nela encontrei as bases históricas que até então buscara inutilmente” (JUNG, 2012, p. 247). Embora o tamanho da obra e o tema tratado possam parecer inabituais para a psicologia, ela foi muito bem recebida e causou surpresa ao seu autor, conforme podemos ler ao prefácio escrito para a segunda edição.
            A primeira parte é dedicada a uma explicação do simbolismo dos sonhos individuais e sua relação com a alquimia (SILVEIRA, 2011, p. 123). Ele chega a afirmar já no início do texto que as explicações ali contidas eram direcionadas ao leitor leigo e despreparado e que quem possuísse conhecimentos acerca da psicologia dos complexos (outro nome usado por Jung, além de Psicologia Analítica, para se referir à sua teoria psicológica) poderia prescindir delas. De acordo com Nise da Silveira, em seu livro Jung: vida & obra, este seria um dos capítulos mais belos já escritos pelo Jung (SILVEIRA, 2011, p. 124).
            Nesta introdução ele aborda questões do processo analítico, sobre a existência de um arquétipo da imagem de Deus na psique e sobre a religião como função psíquica (que ele chama de função religiosa da alma, não atribuindo a esta última nenhum caráter metafísico). “Qualquer que seja a natureza da religião, não resta a menor dúvida de que seu aspecto psíquico, empiricamente constatável, reside nessas manifestações do inconsciente” (JUNG, 2012, p. 41).

As ideias centrais do cristianismo radicam na filosofia gnóstica que, conforme as leis psicológicas, desenvolveram-se forçosamente no momento em que as religiões clássicas se tornaram obsoletas. Esta filosofia baseia-se na percepção dos símbolos do processo inconsciente de individuação, o qual se desencadeia quando se desagregam as representações coletivas principais que dominam a vida humana. Em tais períodos há necessariamente um certo número de indivíduos intensamente possuídos pelos arquétipos numinosos; estes últimos são impelidos à superfície, a fim de formarem as novas dominantes (JUNG, 2012, p. 48).

            A segunda parte é dedicada a uma minuciosa análise dos sonhos de Wolfgang Pauli, famoso físico quântico e prêmio nobel. Para que pudesse analisar os sonhos sem exercer nenhuma influência sobre o sonhador, ele incumbiu uma de suas alunas a observar o processo, que durou 5 meses. Durante três meses o sonhador fez sozinho análises sobre seus sonhos. E por quatro meses ele analisou seus sonhos sob a supervisão de Jung.

Assim, pois, 355 dos 400 sonhos foram sonhados independente de qualquer contato comigo. Apenas os últimos 45 sonhos ocorreram sob a minha supervisão. Não fora, feitas interpretações dignas de nota, pois o sonhador não necessitava de minha ajuda devido à sua excelente formação científica e ao seu talento. As condições portanto eram ideais para uma observação e registro isentos (JUNG, 2012, p. 53).

            O título deste capítulo, Símbolos oníricos do processo de individuação, se baseia justamente no fato de os símbolos oníricos do sonhador estavam “direta e exclusivamente relacionadas com a tomada de consciência do novo centro (designado por Jung como ‘si-mesmo’, ou o arquétipo da totalidade psíquica). Para Jung (2012, p. 51), “o si-mesmo não é apenas o ponto central, mas também a circunferência que engloba tanto a consciência como o inconsciente. Ele é o centro dessa totalidade, do mesmo modo que o eu é o centro da consciência”.
            A terceira parte é dedicada a uma introdução aos conceitos básicos da alquimia, tais como as fases do processo alquímico, a natureza psíquica da obra alquímica, a projeção de conteúdos psíquicos, a obra (opus) alquímica, o significado da ‘matéria prima’, o paralelo lápis-Cristo, além do inconsciente como matriz dos símbolos. Também é neste capítulo que Jung trabalha a importância da imaginação, dado que uma das técnicas da terapêutica junguiana é a imaginação ativa.

Em uma época na qual não havia uma psicologia empírica da alma era fatal que reinasse um tal concretismo: tudo o que era inconsciente se projetava na matéria, isto é, vinha de fora ao encontro do ser humano. Tratava-se de certa forma de um híbrido, meio espiritual, meio físico, concretização que não raro encontramos na psicologia dos primitivos. Assim sendo, a ‘imaginatio’ ou ato de imaginar também é uma atividade física que pode ser encaixada no ciclo das mutações materiais; pode ser causa das mesmas ou então pode ser por elas causada. Deste modo, o alquimista estava numa relação não só com o inconsciente, mas diretamente com a matéria que ele esperava transformar mediante a imaginação (JUNG, 2012, p. 297-98).

            Este é um livro de fôlego e ao qual se deve debruçar sobre as suas páginas com a devida seriedade e mínimo conhecimento de causa para que possa retornar da sua leitura consciente do intenso e profundo mergulho simbólico que acabara de fazer. Isto, justamente pelo fato de o Jung fazer um amplo uso do método da amplificação simbólica para poder nos auxiliar a desbravar esse mundo tão misterioso quanto o dos alquimistas medievais. Este é um livro fundamental para entender as direções que a obra de C. G. Jung tomou nos últimos 30 anos de sua vida e todas as obras que vieram após o seu contato com a alquimia.
            Agradeço a Editora Vozes pela parceria para que eu pudesse produzir a resenha deste livro.
Recife, 18 de maio de 2017

Elaborada por Anderson Santiago
Notas
1 – Corrente filosófico-espiritualista existente no período entre 120 e 240 d. C. Na opinião de Hermínio Miranda, em seu livro O Evangelho gnóstico de Tomé (Editora Lachêtre, 1995, p. 44): “[...] convém ter em mente entre a gnose, como trabalho de busca interior e auto-iluminação, que nada tem a ver formalmente com instituições religiosas, e o gnosticismo, denominação atribuída ao movimento gnóstico que ocupa na história do cristianismo, espaço de tempo que vai de 120 a 240 d. C.”
2 – Quem adota este modo de se referir às obras do Jung é o Roberto Gambini. Ele afirma que o correto é Obras Coligidas “e não ‘Obras Completas’, como erroneamente é traduzido ‘Collected Works’ ou ‘Gesammelte Werke’ na edição brasileira da Editora Vozes. Ainda permanecem inéditos textos que, quando vierem a público, comporão talvez trinta volumes, e não apenas os vinte já publicados” (GAMBINI, R. 2008, p. 63).

Referências
GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. 2a edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. [Ed. especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
__________. Psicologia e alquimia. 6ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MIRANDA, H. C. O Evangelho gnóstico de Tomé. Editora Lachêtre, 1995.
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

Um comentário:

  1. Belo texto,quanto mais nos aprofundamos nas obras de Jung,mais descobrimos pérolas psicológicas para a compreensão do inconsciente e humano e seus símbolo.

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