O
interesse de C. G. Jung pela alquimia não surgiu de inopinado como uma escolha
deliberada, muito menos como uma curiosidade a priori no intuito de explicar
algum tópico específico de sua teoria. Ele conta em sua assim chamada
“autobiografia” Memórias, Sonhos, Reflexões que foi após o início do seu
confronto com o inconsciente que se deu seu encontro com a Alquimia. Esse
encontro foi para ele uma experiência decisiva, onde ele encontrou as bases
históricas da sua psicologia.
Primeiro
ele decidiu estudar seriamente os gnóticos¹, dado que na sua opinião, seu
interesse se dava por eles terem “encontrado, a seu modo, o mundo original do
inconsciente. Confrontaram-se com imagens e conteúdos que, evidentemente,
estavam contaminados pelo mundo dos instintos” (JUNG, 2012, p. 247). Contudo,
A
tradição entre a gnose e o presente parecia-me rompida e, durante muito tempo,
não consegui encontrar a ponte entre a gnose – ou o neoplatonismo – e o presente.
Só quando comecei a compreender a alquimia pude perceber que ela constitui um
liame histórico com a gnose, e assim, através dela, encontrar-se-ia
restabelecida a continuidade entre o passado e o presente. A alquimia como
filosofia da natureza, em vigência na Idade Média, lança uma ponte tanto para o
passado, a gnose, como para o futuro, a moderna psicologia do inconsciente
(JUNG, 2012, p. 247).
Mas
antes de tomar contato com a Alquimia, ele teve alguns sonhos muito
interessantes. No primeiro, que se repetiu várias vezes, ao lado da casa dele
havia outra casa anexa que ele desconhecia. Quando finalmente conseguiu acessar
encontrou em seu interior uma biblioteca repleta de livros dos séculos XVI e
XVII. Nela haviam livros sobre alquimia ricamente ilustrados com gravuras de
cobre e couro de porco. Ele chega a afirmar que “nos sonhos, sentia a
fascinação indescritível que emanava deles e de toda a biblioteca” (JUNG, 2012,
p. 249).
Em 1926
ele teve um decisivo sonho que anunciava seu encontro com a alquimia: em meio à
guerra (presumivelmente a primeira guerra mundial ocorrida entre 1914 e 1918),
ele foge com um homenzinho em uma carroça até entrar em um túnel após passar
por uma ponte e sair na região de Verona (Itália). Lá ele avista uma casa
senhorial semelhante ao castelo de algum príncipe da Itália do Norte. A
curiosidade o leva a adentrar o pátio de tal modo deslumbrado que quando os
portões foram fechados e ele se viu prisioneiro do século XVII, ao que reagiu
resignado.
Este
sonho o levou a estudar inúmeros livros sobre história mundial, história das
religiões e história da filosofia, além do livro que Herbert Silberer escreveu
sobre alquimia. Em suas palavras “quando o seu livro foi publicado, a alquimia
me pareceu uma coisa marginal e bizarra, apesar de ter apreciado a perspectiva
anagógica, isto é, construtiva”. Somente em 1928, ao tomar contato com o texto
alquímico chinês, O segredo da flor de
ouro, enviado pelo seu amigo e sinólogo Richard Wihelm é que ele pode se
aproximar da essência da alquimia.
O
primeiro livro estudado foi o Artis
Auriferae Volumina Duo, de 1953. A partir daí ele compreendeu o significado
do sonho anunciador de que ele “era um prisioneiro do século XVII”. Para
superar as dificuldades do texto, decidiu “organizar um dicionário de
palavras-chave com notas explicativas. Com o passar do tempo recolhi milhares
de termos, e isso constituiu volumes inteiros de citações. Seguia o método
puramente filológico como se estivesse decifrando uma língua desconhecida.
Assim, pouco a pouco, foram fazendo sentido para mim as expressões dos alquimistas.
Foi um trabalho que me absorveu por mais de dez anos” (JUNG, 2012, p. 251-52).
O estudo
da alquimia permitiu que Jung compreendesse que o inconsciente é um processo e
que as relações estabelecidas entre o ego e os conteúdos do inconsciente
desencadeava uma metamorfose da psique. Eis o que afirma em suas Memórias:
“Mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas, e mediante a
compreensão da simbologia alquimista cheguei ao conceito básico de toda de toda
a minha psicologia, o ‘processo de individuação’” (JUNG, 2012, p. 256).
Ele
ainda afirma que um dos aspectos essenciais do seu trabalho foi desde cedo
abordarem temas relacionados às concepções de mundo e do confronto com
problemas religiosos. Nesta perspectiva, apenas em Psicologia e Religião (1940) e Paracelso
(1942) é que ele pode apresentar suas concepções de modo mais detalhado.
Os
escritos de Paracelso contêm um
grande número de pensamentos originais nos quais aparece claramente uma
preocupação com a alquimia, ainda que sob uma forma tardia e barroca. Foi o
estudo de Paracelso que me levou a
descrever a essência da alquimia, particularmente em suas relações com a
religião e com a psicologia, ou melhor, à essência da alquimia em seu aspecto
de filosofia religiosa. Realizei isto em Psicologia
e alquimia (1944). Encontrei então o terreno que foi a base de minhas
próprias experiências durante os anos de 1913 a 1917, pois o processo pelo qual
passei correspondia ao processo de metamorfose alquimista, tema de Psicologia e alquimia (JUNG, 2012, p.
256).
Esta
grande obra (Psicologia e Alquimia) que
compõe o volume 12 das Obras Coligidas², acima citada por Jung, é o foco
central desta recuperação histórica. Ela é importante para demonstrar que a
alquimia não está inserida nas obras de Jung por mero diletantismo erudito, mas
justamente porque para Jung “o encontro com a alquimia foi [...] uma experiência
decisiva; nela encontrei as bases históricas que até então buscara inutilmente”
(JUNG, 2012, p. 247). Embora o tamanho da obra e o tema tratado possam parecer
inabituais para a psicologia, ela foi muito bem recebida e causou surpresa ao
seu autor, conforme podemos ler ao prefácio escrito para a segunda edição.
A
primeira parte é dedicada a uma explicação do simbolismo dos sonhos individuais
e sua relação com a alquimia (SILVEIRA, 2011, p. 123). Ele chega a afirmar já
no início do texto que as explicações ali contidas eram direcionadas ao leitor
leigo e despreparado e que quem possuísse conhecimentos acerca da psicologia
dos complexos (outro nome usado por Jung, além de Psicologia Analítica, para se
referir à sua teoria psicológica) poderia prescindir delas. De acordo com Nise
da Silveira, em seu livro Jung: vida
& obra, este seria um dos capítulos mais belos já escritos pelo Jung
(SILVEIRA, 2011, p. 124).
Nesta
introdução ele aborda questões do processo analítico, sobre a existência de um arquétipo da imagem de Deus na psique e
sobre a religião como função psíquica (que ele chama de função religiosa da
alma, não atribuindo a esta última nenhum caráter metafísico). “Qualquer que
seja a natureza da religião, não resta a menor dúvida de que seu aspecto
psíquico, empiricamente constatável, reside nessas manifestações do
inconsciente” (JUNG, 2012, p. 41).
As
ideias centrais do cristianismo radicam na filosofia gnóstica que, conforme as
leis psicológicas, desenvolveram-se forçosamente no momento em que as religiões
clássicas se tornaram obsoletas. Esta filosofia baseia-se na percepção dos
símbolos do processo inconsciente de individuação, o qual se desencadeia quando
se desagregam as representações coletivas principais que dominam a vida humana.
Em tais períodos há necessariamente um certo número de indivíduos intensamente
possuídos pelos arquétipos numinosos; estes últimos são impelidos à superfície,
a fim de formarem as novas dominantes (JUNG, 2012, p. 48).
A
segunda parte é dedicada a uma minuciosa análise dos sonhos de Wolfgang Pauli, famoso
físico quântico e prêmio nobel. Para que pudesse analisar os sonhos sem exercer
nenhuma influência sobre o sonhador, ele incumbiu uma de suas alunas a observar
o processo, que durou 5 meses. Durante três meses o sonhador fez sozinho análises
sobre seus sonhos. E por quatro meses ele analisou seus sonhos sob a supervisão
de Jung.
Assim,
pois, 355 dos 400 sonhos foram sonhados independente de qualquer contato
comigo. Apenas os últimos 45 sonhos ocorreram sob a minha supervisão. Não fora,
feitas interpretações dignas de nota, pois o sonhador não necessitava de minha
ajuda devido à sua excelente formação científica e ao seu talento. As condições
portanto eram ideais para uma observação e registro isentos (JUNG, 2012, p. 53).
O título
deste capítulo, Símbolos oníricos do processo de individuação, se baseia
justamente no fato de os símbolos oníricos do sonhador estavam “direta e
exclusivamente relacionadas com a tomada de consciência do novo centro
(designado por Jung como ‘si-mesmo’, ou o arquétipo da totalidade psíquica).
Para Jung (2012, p. 51), “o si-mesmo não é apenas o ponto central, mas também a
circunferência que engloba tanto a consciência como o inconsciente. Ele é o
centro dessa totalidade, do mesmo modo que o eu é o centro da consciência”.
A
terceira parte é dedicada a uma introdução aos conceitos básicos da alquimia,
tais como as fases do processo alquímico, a natureza psíquica da obra
alquímica, a projeção de conteúdos psíquicos, a obra (opus) alquímica, o
significado da ‘matéria prima’, o paralelo lápis-Cristo, além do inconsciente
como matriz dos símbolos. Também é neste capítulo que Jung trabalha a
importância da imaginação, dado que uma das técnicas da terapêutica junguiana é
a imaginação ativa.
Em uma
época na qual não havia uma psicologia empírica da alma era fatal que reinasse
um tal concretismo: tudo o que era inconsciente se projetava na matéria, isto
é, vinha de fora ao encontro do ser humano. Tratava-se de certa forma de um
híbrido, meio espiritual, meio físico, concretização que não raro encontramos
na psicologia dos primitivos. Assim sendo, a ‘imaginatio’ ou ato de imaginar
também é uma atividade física que pode ser encaixada no ciclo das mutações
materiais; pode ser causa das mesmas ou então pode ser por elas causada. Deste
modo, o alquimista estava numa relação não só com o inconsciente, mas
diretamente com a matéria que ele esperava transformar mediante a imaginação (JUNG,
2012, p. 297-98).
Este
é um livro de fôlego e ao qual se deve debruçar sobre as suas páginas com a
devida seriedade e mínimo conhecimento de causa para que possa retornar da sua
leitura consciente do intenso e profundo mergulho simbólico que acabara de
fazer. Isto, justamente pelo fato de o Jung fazer um amplo uso do método da amplificação
simbólica para poder nos auxiliar a desbravar esse mundo tão misterioso quanto
o dos alquimistas medievais. Este é um livro fundamental para entender as
direções que a obra de C. G. Jung tomou nos últimos 30 anos de sua vida e todas
as obras que vieram após o seu contato com a alquimia.
Agradeço
a Editora Vozes pela parceria para que eu pudesse produzir a resenha deste
livro.
Recife, 18 de maio de
2017
Elaborada por Anderson
Santiago
Notas
1 – Corrente
filosófico-espiritualista existente no período entre 120 e 240 d. C. Na opinião
de Hermínio Miranda, em seu livro O Evangelho gnóstico de Tomé (Editora
Lachêtre, 1995, p. 44): “[...] convém ter em mente entre a gnose, como trabalho de busca interior e auto-iluminação, que nada
tem a ver formalmente com instituições religiosas, e o gnosticismo, denominação atribuída ao movimento gnóstico que ocupa
na história do cristianismo, espaço de tempo que vai de 120 a 240 d. C.”
2 – Quem adota este modo de se
referir às obras do Jung é o Roberto Gambini. Ele afirma que o correto é Obras
Coligidas “e não ‘Obras Completas’, como erroneamente é traduzido ‘Collected
Works’ ou ‘Gesammelte Werke’ na edição brasileira da Editora Vozes. Ainda
permanecem inéditos textos que, quando vierem a público, comporão talvez trinta
volumes, e não apenas os vinte já publicados” (GAMBINI, R. 2008, p. 63).
Referências
GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. 2a edição. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. [Ed. especial]. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.
__________. Psicologia e alquimia. 6ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MIRANDA, H. C. O Evangelho gnóstico de Tomé. Editora
Lachêtre, 1995.
SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2011.